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REPORTAGEM | Revolução dos Cravos


'As memórias que perduram da eterna 
Revolução dos Cravos'



Introdução

Para a realização deste projeto decidimos explorar as memórias que perduram da 'eterna' Revolução dos Cravos. Escolhemos exatamente este título porque percebemos que as recordações do dia 25 de Abril de 1974 jamais serão esquecidas pelos portugueses. Sejam militares ou civis, a verdade é que é impossível esquecer o que sentiram, o que pensaram e as mudanças que a Revolução causou nas suas vidas. Este foi então o mote para as nossas entrevistas: procurar perpetuar as vivências destas pessoas.

Neste sentido, entrevistámos cinco militares e seis civis de diferentes pontos do país que nos transmitiram histórias muito fortes:

O General Amadeu Garcia dos Santos foi um dos cérebros operacionais da Revolução, em conjunto com Otelo Saraiva de Carvalho. Foi assim um dos responsáveis pelas transmissões no posto de comandos do MFA.

O Furriel Carlos Cedoura fez a montagem do cabo telefónico, de aproximadamente quatro quilómetros, entre a central telefónica e o posto de comandos do MFA. Foi através deste cabo que foi possível transmitir as escutas realizadas. A operação clandestina revelou-se assim fundamental para o sucesso da Revolução.

O Coronel João Menino Vargas foi destacado para libertar os presos políticos que se encontravam na prisão de Caxias, no dia 26 de abril. Conta todo o processo no seu livro Todos ou Nenhum.

O Cabo José Alves Costa estava destacado para a defesa do regime marcelista. Ficou célebre por desobedecer às ordens do Brigadeiro Junqueira dos Reis de disparar sobre o capitão Salgueiro Maia. Apesar de ter sido ameaçado com um tiro na cabeça, o Cabo decidiu não disparar, ação que foi considerada como a “insubordinação mais bela do 25 de Abril”.  A identidade do militar só se tornou pública cerca de 40 anos após a Revolução, data em que foi condecorado pelo atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

O Furriel Miliciano Manuel Correia da Silva foi um dos responsáveis pelo transporte de Marcello Caetano e de dois dos seus ministros após serem detidos, do Quartel do Carmo para o Posto de Comandos do MFA na Pontinha.

No que diz respeito aos civis é de realçar que: Augusto Carvalho e Manuela Santos encontravam-se em Vendas Novas à data da Revolução; Celestino Mateus e Rosária Rosa residiam em Alcácer do Sal; Laurinda e Victor Coropos, por sua vez, viviam na capital, no concelho de Odivelas.

Para obtermos uma coletânea de respostas consistente definimos algumas perguntas mais genéricas para os militares, como: “O que sentiu durante todo o processo?”, “O que faz com que não se esqueça do dia 25 de abril?” e “Orgulha-se de ter feito parte da Revolução?”. Para os civis selecionámos questões como: “Como era a vida antes do dia 25 de Abril?”, “Onde estava quando se deu o golpe?” e “Sentiu medo em algum momento?”.

Ao longo desta reportagem, quisemos conciliar todos os testemunhos de forma a contar o que realmente significou o dia 25 de Abril de 1974 para quem o viveu. Escolhemos precisamente a modalidade de entrevista porque o objetivo do nosso trabalho passa por homenagear e perpetuar as memórias da Revolução que até hoje perduram e ainda porque sentimos que é muito enriquecedor ouvir as histórias na primeira pessoa. Estarmos a “dar voz” a quem vivenciou e fez parte da Revolução permite-nos descobrir pormenores que muitas vezes não são conhecidos.

Desta forma, pretendemos contribuir para imortalizar todo o processo de Revolução aos olhos daqueles que a vivenciaram e que nela participaram. Queremos assim conservar estas memórias de modo a conseguir transmiti-las, tanto agora como no futuro.


A célebre Revolução dos Cravos  


Pouco passava da meia-noite. Ouvia-se na rádio Renascença a música Grândola Vila Morena, de Zeca Afonso. Surge aqui o primeiro indício de que algo estava prestes a acontecer.  Poucos sabiam, mas este era o sinal de que as tropas precisavam para começarem a sair dos quartéis. Pouco depois, são ocupados pontos considerados estratégicos - como o Rádio Clube Português que emite o primeiro comunicado do Movimento das Forças Armadas.

O comunicado do MFA revela as razões por detrás do movimento: a Guerra Colonial que o governo não conseguiu resolver durante treze longos anos; a privação da população dos seus direitos e responsabilidades políticas (direito ao voto); o abuso de poder que se normalizou com o passar dos anos; as péssimas condições de vida que se faziam sentir em Portugal; a ausência de liberdade; o desejo de restituição dos direitos legítimos e legais do povo.

As ruas foram tomadas pelas tropas, por esta altura já não era possível reverter a situação. Quando o povo se apercebe do que se estava a passar, sai imediatamente para as ruas em sinal de apoio aos militares e as forças paramilitares fiéis ao regime iniciam a sua rendição.

O Quartel do Carmo, onde se encontrava Marcello Caetano e mais dois ministros do seu Gabinete, é cercado por militares e civis. Marcello, vendo que não lhe restava qualquer hipótese, anuncia a sua rendição e é hasteada a bandeira branca. Pelas 19h30, o agora ex-presidente do Conselho é levado, na Chaimite BULA, para o posto de comandos do MFA na Pontinha.

A PIDE, na tentativa falhada de pôr um ponto final na Revolução e quem sabe revertê-la, inicia uma série de disparos que resultam em quatro óbitos e quarenta e cinco feridos (todos eles civis manifestantes).

Assim, a 25 de Abril de 1974, o Estado Novo caiu no Carmo. A ditadura chegou ao fim e iniciou-se a forma de governo em vigor até aos dias de hoje - a Democracia.

Nunca uma revolução como esta se tinha visto. A data marcou uma revolta militar com o intuito de derrubar o regime ditatorial. No processo não foi necessário utilizar a força ou as armas. Em vez disso, colocaram-se cravos nos canos das espingardas - um gesto tão bonito que, todos os anos, pelo dia 25 de Abril, se comemora a Revolução dos Cravos, a restituição da nossa liberdade.

                                     
Pré-Revolução


Iniciou-se, em 1926, o período de ditadura em Portugal. Salazar, que começou como Ministro das Finanças, conseguiu alcançar o lugar mais poderoso no seio político e iniciou a sua governação: um “regime de ditadura, com coerção, polícia política, censura, prisões e mortes.” (Pedro, 2020 in Diário de Notícias)

Durante o processo de entrevistas, recolhemos várias memórias, contadas na primeira pessoa, que remontam ao período em questão - a longa Ditadura portuguesa.

Existe algo comum em todos os relatos: a falta de condições que era sentida a todos os níveis. Todos retratam o tempo de ditadura como uma imensa miséria - falta de condições de trabalho, os salários eram muito baixos em comparação com o quanto trabalhavam (muitas horas de trabalho, desde o nascer ao pôr do sol, e não havia folgas), o que resultava em dificuldades financeiras, sendo a comida muito pouca ou, por vezes, faltando. Não havia condições de higiene, de habitação e de vestuário. “Era uma vida muito escura (...) Não se podia dizer que se tinha fome”, disse-nos Rosária Liberato Rosa. Isto leva-nos às questões da repressão e da ausência da liberdade de expressão, que também nos foram relatadas por todos os entrevistados.

“Era uma tristeza. Não se podia falar, não se podia estar num café em conjunto. Tínhamos medo de tudo. Os miúdos não podiam jogar à bola”, contou-nos Laurinda Coropos. De facto, “reclamar era uma palavra proibida” (Furriel Carlos Cedoura), e se ousassem fazê-lo as represálias eram sentidas.

 A polícia política estava em todo o lado, nem dentro da própria casa era possível estar em paz. A população vivia com medo do que lhes podia acontecer caso fossem apanhados em flagrante a ouvir uma rádio que debatesse temas políticos, como nos contou Celestino Mateus: “Havia uma rádio a que chamavam a rádio Moscovo, (...) e havia aquelas pessoas mais revolucionárias que queriam ouvir aquele posto. Deitavam-se na cama e metiam o rádio debaixo da roupa da cama com medo, porque a PIDE ia pôr-se à porta das pessoas para ver se alguém estava a ouvir...e prenderam muita gente, levavam muita gente nessa altura”. O medo incutido era tanto que Augusto Carvalho, que na altura tinha oito anos, nos disse que quando via a GNR o seu coração começava a palpitar muito.

Em relação ao direito à educação, o Furriel Carlos Cedoura relatou-nos que na ditadura o ensino e a formação das pessoas eram muito diferentes. Só os filhos das pessoas abastadas é que conseguiam melhores formações e ter cultura geral. O Estado tentava ao máximo não instruir o povo: não havia qualquer formação política, apenas na universidade.

É certo que no seio de um Portugal analfabeto e sem cultura, a probabilidade de o povo se revoltar era drasticamente menor. Em Lisboa, ainda que a escolarização fosse pouca, havia inevitavelmente mais informação a circular. Já no Alentejo a população vivia quase isolada, não havia acesso a revistas ou jornais nem conhecimentos sobre política, sobre o governo em vigor, ou sobre outras formas de regime - de acordo com os relatos de Manuela Santos e Rosária Rosa.

O Furriel Carlos Cedoura revelou-nos ainda que só começou a ganhar consciência política ao ver as injustiças que se passavam no país. Naquela altura, as mulheres com mais de 21 anos não podiam votar, não podiam viajar para o estrangeiro sem autorização do marido. Algumas eram excessivamente maltratadas pelo mesmo e não podiam contestar. Não se falava de violência doméstica, era um termo que não se usava, o homem tinha sempre razão em tudo. “Uma mulher era uma criada dos maridos e dos filhos. A minha mãe passou por isso”, disse-nos o Furriel Correia da Silva. Para além da ausência de liberdade, havia também uma negação dos direitos humanos.

Aliado a tudo isto, havia ainda a questão da Guerra Colonial: mais uma fonte de sofrimento, descontentamento e injustiça para a população portuguesa do séc. XX.

Vivia-se num Portugal obscuro e repleto de infelicidade e miséria, com pouca esperança de que algum dia o regime que durou quase meio século caísse.

No entanto, o Furriel Manuel Correia da Silva recorda com emoção o momento em que Salgueiro Maia convocou os militares para “acabar com o estado a que o país tinha chegado”: “Toda a gente queria ir. Não houve ninguém que não quisesse ir. Não sabíamos o que ia acontecer. Não sabíamos o dia. Não sabíamos a hora. Só soubemos no dia 24 de abril e era individualmente que éramos contactados, não era em grupo.” O Furriel não poupa os elogios ao capitão: “Tivemos a sorte de ser comandados pelo Salgueiro Maia. Era um homem e um operacional com umas qualidades humanas fantásticas, mas também com grandes qualidades militares”.


O dia da Revolução


Chegou o grande dia. Para o Furriel Correia da Silva a Revolução foi ganha “no Terreiro do Paço quando os tanques não dispararam e a fragata não disparou.” Manuel temeu pela sua vida naquele momento: “Se eles disparavam, arrasavam tudo. Aquela baixa pombalina ficava toda destruída”. O Furriel refere-se à fragata que defendia o regime Marcelista, que estava pronta a atirar contra os militares revolucionários no Terreiro do Paço.

Segundo o General Amadeu Garcia dos Santos este foi “um grande momento de tensão”, por não saberem o que a fragata ia fazer. Contudo, o General tem uma opinião muito pessoal. Acredita que nos dois lados havia militares que tinham lutado lado a lado na Guerra Colonial e considera que seriam “incapazes de ser matar uns aos outros” no Terreiro do Paço: “Lá em Angola, na Guiné ou em Moçambique, se calhar um tinha salvo o outro, não era aqui que iam dar um tiro ao outro. Talvez essa tenha sido uma razão para que não houvesse confrontos e guerras entre os revolucionários e os apoiantes do regime”.

José Alves Costa foi o responsável por evitar “um banho de sangue”, segundo o Furriel Correia da Silva. O Cabo Apontador que chegou ao Terreiro do Paço, pronto a defender o regime de Marcello Caetano, desobedeceu às ordens do Brigadeiro Junqueira dos Reis de abrir fogo contra a coluna de Salgueiro Maia – “Ou dá fogo ou meto-lhe um tiro na cabeça”. O autor do livro Os Rapazes dos Tanques conta: “Fui criado para servir e não para matar. Eu sabia que ia matar muita gente e então era impossível fazer isso. Eu sabia a arma que tinha na mão e sabia muito bem que se disparasse aquilo era para lá o fim do mundo.” Na opinião do Cabo Apontador, se naquele dia tivesse obedecido às ordens, “não havia 25 de Abril nenhum. Havia era uma desgraça autêntica”.

Se fosse hoje, a decisão de José Alves Costa não seria diferente. Não se esquece, igualmente, das palavras de Salgueiro Maia. Segundo o capitão, a insubordinação do Cabo Apontador foi a “mais bela do 25 de Abril”. O Furriel Correia da Silva estava a poucos metros de Salgueiro Maia quando se deu esse momento e recorda-se da emoção que sentiu: “Estava a andar e a trincar os lábios e nós, os outros oficiais e sargentos, estávamos com a mão no ar a fazer o V de vitória. Esse foi o momento mais marcante e onde vimos que o 25 de Abril ia mesmo para a frente”.

Manuel Correia da Silva não tem qualquer dúvida: foi o dia mais feliz da sua vida e di-lo sem hesitar. O Furriel Miliciano não se esquece do que sentiu quando viu Marcello Caetano, o até então Presidente do Conselho, a descer os degraus do primeiro andar até à entrada do Quartel do Carmo - “Eu fiquei sinceramente gelado. Parece que eu não reagi ao ver um homem daqueles a ser preso e a ser levado pela minha viatura. Um homem que antes tinha o poder todo na mão.”

Correia da Silva revela que Marcello parecia estar realmente cansado, mas “vinha com uma pose de verdadeiro estadista. Sabia que não podia fazer mais nada.”

Já Rui Patrício e Moreira Batista (Ministro dos Negócios Estrangeiros e Ministro do Interior da altura, respetivamente) iam dentro da Chaimite Bula “aterrorizados”. O Furriel não se esquece de como o povo queria fazer justiça pelas próprias mãos: “Íamos lá dentro a ouvir coisas como «Morte ao Fascismo», «Morte ao Marcello Caetano». Uma chaimite pesa imensas toneladas, mas aquilo abanava tudo porque era imensa gente a bater nela e a empurrar.” Contudo, Correia da Silva e os colegas, responsáveis pelo veículo blindado, tinham a responsabilidade de manter o então Presidente do Conselho e os ministros em segurança e de os entregarem aos comandantes que aguardavam na Pontinha.

Um desses homens era o General Amadeu Garcia dos Santos, responsável por montar as transmissões do Posto de Comandos do MFA, ao lado de Otelo Saraiva de Carvalho. O General conta como não hesitou em “colaborar com uma situação qualquer que substituísse o antigo regime por uma democracia.” Afirma que tinha muitas preocupações relativamente à forma como poderia correr o golpe, mas garante que “um militar tem de evitar ir nervoso porque os medos podem provocar erros irremediáveis na execução da operação”.

Por sua vez, o Coronel Menino Vargas estava em casa. Sabia que a Revolução ia acontecer e confessa ter ficado “sentadinho à espera no sofá”. Gostava de ter participado diretamente no golpe, mas por outro lado sente que foi um alívio, dado que por ter mulher e filhos ia correr um risco bastante grande.

O Furriel Carlos Cedoura estava no seu quartel em Sapadores a fazer algumas escutas e conta que passou o dia “na expetativa, sempre a ouvir as atualizações do que se estava a passar”. “Foi pelas 14 horas que percebi que iria mesmo correr tudo bem pois os comunicados eram favoráveis. Pelas 17 horas tive a certeza absoluta de que tinha dado tudo certo”, acrescenta. Sentiu-se assim “aliviado e satisfeito” pela conquista dos colegas. O Furriel recorda-se, emocionado, de ter sido elogiado pelos seus superiores – “Parabéns pelo teu excelente trabalho com as escutas”. Mostra-se assim muito orgulhoso pelo papel que desempenhou na Revolução dos Cravos.

O Furriel Correia da Silva recorda: “O povo de Lisboa foi o verdadeiro herói do dia 25 de Abril. Eram milhares e milhares de pessoas a apoiar-nos. Começaram a juntar-se quando perceberam que era para derrubar o regime fascista. As tropas que ainda podiam vir contra nós foram logo desmotivadas porque o povo rodeava as viaturas e eles acabavam por retirar”. O Furriel não esconde o orgulho que sente por ter feito parte da Revolução: “Eu estive em todos os sítios onde se deram os principais acontecimentos. Tive essa felicidade e estou aqui vivo para contar. Nós conseguimos a liberdade que é o bem supremo de qualquer ser humano.”

Os civis foram, de facto, apanhados de surpresa. Espalhados por todo o país, nomeadamente por Alcácer do Sal, Vendas Novas e Odivelas, os entrevistados tiveram reações muito semelhantes relativamente ao que estava a acontecer na capital.

Augusto Carvalho é um deles, tinha apenas 8 anos quando se deu o golpe. Afirma que a primeira vez que teve algum tipo de ligação com a política foi no dia 25 de Abril de 1974. Como tal, não se esquece do estranho pedido da sua professora primária naquela manhã: “A minha professora chamou alguns miúdos, inclusive a mim. Na sala de aula havia a foto do Marcello Caetano e do Américo Tomás. [A professora] Mandou-nos queimá-las. Achámos aquilo estranho, sabíamos que aqueles homens eram as figuras máximas do Estado.”

Augusto recorda-se de chegar a casa e de ouvir as vizinhas comentarem o sucedido. Diziam que havia carros blindados e tropas na rua e lembra-se de sentir algum medo. Confidencia que “havia no ar um ambiente anormal”, era inegável que algo se estava a passar. Contudo, devido à tenra idade, o jovem não fazia ideia do que é que poderia acontecer – “se ia ser melhor, se ia ser pior, não sabia mesmo”.

A sua mãe, Manuela Santos, recorda a manhã do dia 25 de Abril como outra qualquer: “Eu levantava-me cedo, tratava dos animais, trabalhava na agricultura”. Contudo, foi a rádio que chamou a sua atenção para o facto de algo diferente do habitual se passar – “Fui para casa fazer o almoço, liguei a telefonia e percebi que estavam a dar músicas que não era costume, como a Grândola Vila Morena. Eu não tinha noção do que era, mas fazia-me confusão porque é que estavam a tocar aquelas músicas que eu nunca tinha ouvido. Entretanto veio uma vizinha a minha casa e disse-me que tinha havido uma grande revolução em Lisboa. Começámos a ouvir que era guerra e ficámos com medo”.

Rosária Liberato Rosa e Laurinda Coropos têm histórias semelhantes: foram aconselhadas pelas vizinhas a comprar muita comida para se prevenirem. Rosária conta que a vizinha foi dizer-lhe que estava a acontecer um golpe de estado e aconselhou-a: “nestas coisas às vezes há grandes problemas...se puderes comprar umas conservas e umas coisas que não se estraguem para teres em casa é bom porque costuma haver faltas”. Por sua vez, a vizinha de Laurinda pediu-lhe que tomasse conta dos seus filhos: “Eram sete horas e trinta minutos. Ela disse que tinha de ir imediatamente ao banco ver se comprava alguma coisa de comer para ter em casa. Perguntou-me se eu tinha dinheiro porque não sabia o que podia acontecer e aquilo podia dar uma guerra”, recorda a moradora de Odivelas.

Celestino Mateus e Victor Coropos foram ambos trabalhar. Victor tinha ouvido, durante a noite, o comunicado do MFA: “Não conseguia dormir e pus-me a ouvir o programa dos discos pedidos.” Porém, Celestino só soube às 6h da manhã, quando estava pronto para começar o trabalho – “Eu estava no meu camião e o meu colega estava no dele. Ele ouviu e veio ter comigo. Perguntou-me «Tens o rádio a trabalhar?», eu disse-lhe que não e ele disse «liga lá o rádio, houve um golpe de Estado!» Quando eu liguei estavam a cantar a Grândola Vila Morena.”

Em casa, as mulheres, Laurinda e Rosária, temiam pela segurança dos maridos. Contudo, passado pouco tempo estes foram mandados para casa.

Os civis não faziam ideia do que podia acontecer. Celestino acredita que “podia haver tiros e morrer muita gente”, pois nunca ninguém pensou que corresse tão bem como correu. Nessa manhã, Rosária foi para o trabalho e sentiu um clima de grande medo: “O meu chefe lá da fábrica telefonou e disse para mantermos as portas fechadas, e mesmo que alguém batesse à porta não abríamos porque nunca se sabia quem é que poderia vir ali. Nós tínhamos muito receio de que acontecesse alguma coisa de mal porque não sabíamos o que isto era, nunca tínhamos ouvido falar em tal coisa.”

A rádio revelou-se fundamental para acompanhar os acontecimentos ao longo do dia: “Durante o dia todo ouvi o que a rádio estava a dizer”, conta Laurinda Coropos. Os comunicados do MFA, especialmente, foram alimentando esperanças. Victor Coropos começou a perceber que “a PIDE e a censura iam acabar”. Laurinda lembra-se de pensar que “era bom para a gente, a vida ia mudar”.


 Pós-revolução


Tal como o processo da dita Revolução dos Cravos foi marcante na vida e na memória de toda uma geração, também o processo de democratização e tudo aquilo que se seguiu acabou por deixar marcas. O regime, que durante mais de quarenta anos oprimira a sociedade portuguesa, caíra finalmente. Estava agora aberto o caminho para o fim da guerra colonial e para a reposição das liberdades dos cidadãos.              

No dia a seguir à Revolução, o Coronel Menino Vargas libertou os presos políticos da prisão de Caxias. Recorda carinhosamente que, antigamente, passeava com a sua filha Ana, “muito novinha nessa altura”, que dizia ser ali que estavam presos “os homens maus”. Afirma que a missão que lhe foi dirigida “foi uma grande alegria”. Não se esquece das dificuldades e, essencialmente, das longas horas que foram necessárias para desempenhar a tarefa. Contudo, mostra-se muito orgulhoso por lhe ter sido atribuída tal responsabilidade.

Portugal estava diferente: “o país começou a modificar-se”, conta Rosário Liberato Rosa. Já o Furriel Correia da Silva relembra que “a diferença foi abismal”. A Revolução de Abril levou a uma profunda transformação a todos os níveis, instaurando em Portugal um Estado democrático pluripartidário, que garantiu os direitos e as liberdades aos portugueses: “Desde o momento em que fizeram o golpe mudaram as situações militares e mudaram os governos”, relata Victor Coropos. Já Rosário Liberato Rosa recorda: “Nós pensávamos: «vamos lá ver no que isto vai dar, vamos lá ver como é que a gente se safa», mas depois isto foi-se encaminhando, começou a haver eleições, começaram a formar-se governos”.

Deposta a ditadura, era tempo de desmantelar as estruturas que tinham sido a base do regime do Estado Novo. “Portanto, não há censura, não há presos políticos, um cidadão tem garantias, há uma diferença bastante substancial (…) a Revolução trouxe-nos a liberdade, trouxe-nos conquistas”, afirma o Coronel João Menino Vargas.

“Desde o 25 de Abril eu sou um homem livre. A vida não se compara porque houve muito desenvolvimento”, relembra o Furriel Correia da Silva, contando ainda: “A nossa missão e a maior conquista do 25 de Abril foi a liberdade”. Manuela Santos partilha que “o nosso país evoluiu. Houve muita coisa que mudou”.

Paralelamente, e não menos marcante na memória de todos os entrevistados, também a vida da população se alterou por completo, proporcionando aos portugueses melhores condições de vida e de trabalho: “o nível de vida começou a subir e as pessoas a estar melhor, enfim, melhorou 400% ou 500% em relação àquilo que existia antes”, relembra o Cabo Apontador José Alves Costa.

“A partir daí começámos a ter as 8 horas de trabalho. Começou-se a ganhar mais alguma coisinha. A vida começou a evoluir. Isso foi bom. Os miúdos que andavam na escola começaram a ter mais oportunidades do que aquelas que havia antigamente. Mas continuei a trabalhar muito”, conta Manuela Santos.

Já Furriel Carlos Cedoura refere que foi fulcral para o país a “instauração da democracia para haver liberdades fundamentais e igualdade entre as pessoas.” Relativamente a isto, acrescenta: “Quem efetivamente ficou a ganhar com isto foram as senhoras que passaram a ter vantagens que não tinham, a tal igualdade”. Laurinda Coropos afirma que as mulheres eram escravas dos maridos. A partir daí, puderam votar, puderam arranjar os seus empregos e ser praticamente iguais aos homens.

Todavia, o processo não foi isento de tensões políticas e sociais na sociedade: greves, manifestações e conflitos laborais fizeram-se sentir por todo o país. No Ribatejo e no Alentejo, no início de 1975, proprietários e trabalhadores agrícolas entraram em confrontos que se traduziram em ocupações de terras: “As pessoas que trabalhavam nas herdades ocuparam os terrenos. Os donos destes, uma grande parte, ficaram sem eles. A partir daí formaram as cooperativas e foi assim que isto funcionou uns quantos anos, por meio de cooperativas e coisas assim. É que além de coisas bem feitas houve coisas mal feitas, muitas coisas mal feitas. O que nós precisávamos era de condições de vida e bons ordenados, e não de andarem a ocupar as coisas que eram dos outros”, conta Celestino Jerónimo Mateus.

Para além de todas estas mudanças também o processo de descolonização deixou marcas na memória e na vida daqueles que viveram tão de perto esta realidade. O cabo apontador José Alves da Costa relembra que, após o 25 de Abril, começaram a sentir-se melhorias quando não tiveram de ir mais para a Guerra Colonial e também quando os militares começaram a voltar ao país: “Deixando regressar os militares do Ultramar, para nós já foi uma alegria grande”.

Nessa altura, o início do processo de descolonização foi como que uma 'lufada de ar fresco' que trouxe uma sensação de ânimo e de alívio à população: “Fico feliz por ver que realmente temos uma vida melhor e que os nossos filhos não vão para a guerra, o que é muito importante. Não vão como foi o meu marido e os meus irmãos”, afirma Laurinda Coropos.

Contudo os problemas não acabaram com a descolonização, dado que isto afetou toda uma geração, como nos conta o Furriel Correia da Silva: “São dezenas e dezenas de milhares os que ficaram em cadeiras de rodas, sem braços. E psicologicamente, tenho amigos que ainda hoje estão a dormir e acordam porque estão a ouvir as granadas. Ficaram marcados para toda a vida”. A par de tudo isto, há ainda quem faça referência aos dias de hoje, demonstrando o seu orgulho nas relações que prevalecem com as antigas colónias, como é o caso do general Amadeu Garcia dos Santos: “Nós temos com aqueles povos das ex-colónias uma relação como mais ninguém do mundo tem. Eles ainda hoje nos dizem «Venham para cá, que a gente precisa de vocês». São indivíduos que têm connosco uma relação muito positiva”.

Parte das memórias da época remetem ainda para o processo de democratização que deveria culminar nas primeiras eleições livres para a Assembleia Constituinte, convocadas para 25 de Abril de 1975, um ano após a Revolução: “De uma ditadura passou a haver uma democracia. É claro que isto não foi de um dia para o outro, ainda demorou a fazer uma constituição, a fazer eleições, a eleger um novo governo que fosse democrático”, declara o General Amadeu Garcia dos Santos.

Ainda assim, os nossos entrevistados preferem dar ênfase a tudo o que a passagem para a democracia nos trouxe de bom: “A democracia é melhor em tudo”, tal como Rosário Liberato Rosa nos conta. “Na democracia tu podes andar à vontade, falar à vontade e podes fazer o que tu quiseres”, palavras de Laurinda Coropos. Augusto Carvalho afirma: “As maiores diferenças são a liberdade de expressão, de opinião, de circulação e de associação. Na democracia as regras são mais flexíveis e as leis são mais direcionadas para o bem-estar do povo”.

De forma a apelar ao bom senso da nova geração perante os perigos que corre, o Coronel João Menino Vargas confidenciou-nos: “Uma pessoa que vive numa democracia não imagina o que é não viver em democracia, e os jovens de agora não sabem que uma ditadura está ali ao dobrar da esquina. Não fazem ideia…E as ditaduras não vêm com aviso, vêm com pés de lã. Vêm com o CHEGA, com o partido não sei quê, com a desordem que se instalou. É preciso restaurar a ordem, e as pessoas, para esse fim, admitem um regime de força, um regime que controle as pessoas, que as obrigue a portarem-se bem. Portanto a ditadura não se anuncia! Ela aparece e os jovens não sabem isso!”

Percebemos assim que a memória de uma ditadura duradoura leva a que o medo de um regime semelhante ao que vigorou em Portugal no século passado esteja presente e não passe despercebido.


Conclusão


As memórias e os testemunhos recolhidos proporcionaram-nos uma maior aproximação ao Portugal da época, dado que todos os envolvidos partilharam as suas recordações daquilo que foi o país ainda no regime do Estado Novo; nos anos 70, com a Revolução de 25 de Abril de 1974; e em todo o conturbado processo que se seguiu. Estas memórias permitiram-nos averiguar a evolução do nosso país e de que forma essa evolução influenciou a vida de toda uma população.

Num primeiro momento, as memórias dos entrevistados remetem para o tempo da Ditadura, com um claro realce para a pobreza, para as dificuldades com que o povo se debatia e ainda para a repressão que se fazia sentir em todos os setores da sociedade.

Paralelamente, todos aqueles que partilharam connosco as suas memórias demonstraram ter em comum o desejo de mudança, que só aconteceu aquando da Revolução dos Cravos. Neste contexto, é ainda notória a felicidade que todos expressam ao relembrar este dia e a Revolução que incontornavelmente marcou as suas vidas.

Por fim, as lembranças de tudo o que se seguiu ao dia 25 de Abril: questões como a liberdade, as melhorias de qualidade de vida e de trabalho, a descolonização e a transição para uma democracia são extremamente evidenciadas. Desta forma, também os apelos a uma maior atenção, por parte da nossa geração, aos perigos que advêm da possibilidade de voltarem a emergir regimes ditatoriais no nosso país são frequentes, o que demonstra as memórias aterradoras que prevalecem de um regime duro, repressivo e cruel.

Hoje, passado quase meio século da eterna Revolução dos Cravos, é fulcral dar voz a quem ainda está cá para contar e fazer prevalecer as suas memórias de um período não tão longínquo. Assim, após a experiência gratificante que foi conversar com todos aqueles que se disponibilizaram para falar sobre as suas perspetivas sobre a Revolução, o nosso objetivo de homenagear não só aqueles que estiveram na linha da frente como aqueles que, apesar de não terem participado diretamente, continuam a relembrar este dia, é dado como cumprido.




Por: Beatriz Ferreira, Filipa Amaro e Marta Carvalho

Trabalho realizado em âmbito académico, para a unidade curricular Portugal Contemporâneo da Licenciatura em Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social. 

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