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Conto: “O Operário”

O OPERÁRIO
 
 
Ela não sentia como se Virgílio tivesse um dia pertencido àquele lugar. Pelo menos não no setor onde aguardava ser chamada, uma sala de espera inspirada no hospital particular mais duvidoso que se possa imaginar, tentando passar um senso de elegância com um minimalismo barato. Claro, os donos da fábrica não esperavam que seus operários e suas humildes famílias conseguissem enxergar o vazio emocional daquele lugar enfeitado de retas, planos e pontos ou cheirar a tristeza escondida no aroma vagabundo de lavanda.
 
Nada daquilo representava as dores crônicas na coluna de Virgílio causada pelos anos de equipamentos e posturas inadequadas às quais era submetido, ou a mistura acre dos odores químicos e ferrosos de sua roupas, botas e luvas, que usava para controlar o colossal maquinário de fundição metalúrgica; tudo isso sob o calor desértico das fornalhas. Joana perdeu a conta de quantas vezes lavou e jogou fora fronhas de travesseiros impregnadas com aquele cheiro quente de fábrica. Não, seu marido nunca havia entrado onde ela estava agora. Até onde sabe, aquele lugar pode ter sido construído só para receber a ela e todas as outras viúvas e órfãos em busca de alguma resposta. Em algum lugar por ali com certeza havia uma porta bonita, mas feia do outro lado, escondendo o desprazer dos que não se foram e voltaram ao trabalho depois do dia de luto ordenado pela prefeitura, não pela fábrica.
 
“O aconteceu com você, Virginho?”, ela murmurou enquanto deslizava o dedo sobre cabeça do marido na foto que carregava consigo desde o dia do acidente. O papel liso e escorregadio nem de perto preenchia o vazio que os fios grossos e cheios do cabelo de Virgílio deixaram entre seus dedos. Do outro lado seus olhos marejaram com o escrito na letra de Virgílio:
 
“30 ANOS DA MINHA…”, seguido de um desenho quase infantil de uma joaninha. Ele tinha muitos defeitos, mas ao seu lado Joana se sentia acompanhada, e de alguma forma isso era suficiente.
 
Um burburinho crescente dentro da sala de reuniões a tirou do conforto de suas memórias, trazendo-a de volta ao murmúrio choroso dos pais, maridos, esposas e crianças que aguardavam sua vez. Joana abriu a bolsa para aguardar a foto e fechou rapidamente, quando um brilho de relance lá no fundo a lembrou do que levava consigo. A porta se abriu num estrondo, seguido de um silêncio sepulcral quando a mulher que havia entrado por último saiu marchando aos prantos em direção a ela. Joana conhecia Tereza, a esposa de um dos poucos amigos de Virgílio e agora, assim como ela, viúva. Atordoada pela velocidade dos acontecimentos, Joana não conseguiu mover um único músculo para tentar escapar da cuspida que Tereza lançou em sua direção antes de se agrupar com várias outras pessoas da sala de espera e começar a cochichar, lançando olhares e apontamentos em sua direção.
 
Era quase impossível reagir diante da confusão de sentimentos que pulavam entre seu peito e sua cabeça, que vibrava entre entre a raiva e a empatia. Joana apertou a bolsa contra o peito e sentiu seu peso anormal, gelado, quando como um vulto um lenço foi estendido diante de seus olhos, que agarrou sem pensar e esfregou na saliva que escorria por seu rosto. “Joana da Silva?”, perguntou o jovem engravatado cheio de pesar que lhe entregou o lenço. A atenção de Joana foi o suficiente para sua confirmação: “Acho melhor entrarmos logo”. Joana seguiu o homem com passos rápidos e logo todo o barulho e atenção voltados para ela se dissiparam por trás da porta semi-acústica. A parte interna do escritório era ainda mais seca que o exterior, com uma mesa de vinil amarelada pelo tempo e alguns arquivos grandes de alumínio. No fundo, a famigerada porta bonita, rumo à realidade da fábrica e suas dores.
 
“Pode sentar, senhora Joana. Por favor”, e assim ela fez sem pensar muito. Percebeu que estava tremendo, sentia frio por dentro. Percebeu-se em choque com a cusparada que havia levado. Joana pouco se importava com o que Tereza havia feito, sua cabeça dava voltas nos possíveis porquês daquilo ter acontecido, ainda mais naquele lugar, naquele momento em que todos estavam afogados em luto.
 
“Primeiramente Joana, eu me chamo Tiago, sou coordenador de relações humanas da Romero Metalurgia e quero lhe oferecer meus sinceros sentimentos. Meu coração assim como o de todos os colaboradores da Romero Metalurgia estão com a senhora neste momento tão difícil”, começou o gerente, pesaroso, enquanto servia um copo d’água para ela. “Virgílio é um de nossos colaboradores de maior destaque aqui e fará grande falta aos seus colegas”. Joana sabia que se alguém visse o salário de Virgílio nunca imaginaria que ele tivesse algum destaque em qualquer coisa. “Onde ele tá?” questionou Joana sem rodeios. O gerente respirou fundo e foi cortado antes mesmo de expirar: “Não quero saber agora de proposta, de indenização, nada. Eu quero o corpo do meu marido AGORA. Virgílio vai ser velado e enterrado com a família dele”, disparou Joana, sem perceber ao certo em que momento seus olhos começaram a marejar.
 
Mesmo assim, ela não piscou em nenhum momento do que pareceu uma eternidade para o gerente. Ele engoliu em seco mesmo tentando sustentar ao máximo sua máscara empresarial até que conseguisse reunir as palavras perdidas que havia ensaiado: “Eu sei que não é um momento fácil, senhora Joana”, ele podia jurar que havia gaguejado. “E parece que a senhora já está sabendo do programa Lázaro, de amparo familiar, não é?”
 
“Já vi sobre e não quero. Quero Virgílio”, respondeu Joana. “Já não basta passar a vida trabalhando, morrer no trabalho, por causa do trabalho. Agora tem que trabalhar morto também?” E após outro longo suspiro o gerente deu continuidade ao seu script: “Virgílio é um colaborador exímio no que faz e eu tenho certeza que sua continuidade através do programa Lázaro é muito valorizada pela Romero Metalurgia. Enquanto isso, ele continuará levando o sustento para sua família, mesmo após seu falecimento.”
 
Joana perdeu a compostura e atravessou a máscara do gerente com seu olhar: “Virgílio não é nada! Virgílio FOI, Virgílio morreu! Morreu aqui e não passa mais nenhum segundo nesse lugar de merda! Ele odiava trabalhar aqui e nunca se condenaria a continuar sustentando esse lugar depois de morrer!”
 
Sob as mãos do gerente, uma pilha de papéis grampeados atravessaram a mesa até chegar em Joana, que prontamente perguntou do que se tratava. Ela não sabia como estava conseguindo falar com um fôlego tão curto e fraco. “Virgílio assinou este contrato três dias antes do acidente”. Joana sentou e começou a folhear o contrato. Enquanto as folhas passavam ela só conseguia enxergar a rubrica de Virgílio consistentemente dançando no canto de cada página. O gerente perguntou algo sobre Virgílio não ter conversado sobre isso com ela, e ela ignorou: “O que isso significa? O que acontece agora?”. Lentamente trazendo a pilha contratual de volta à sua posse ele prosseguiu: “Virgílio fez um contrato post-mortem com a Romero Metalurgia por 10 anos, concedendo a utilização do seu corpo e sua estrutura cerebral para o trabalho através um moderno sistema de controle psicomotor. Virgílio está descansando no céu enquanto deixa seu corpo cuidando de sua família e nos ajudando a ir mais longe na nossa missão de construir um futuro com cada vez mais qualidade e segurança. Mas há uma questão…”, Joana interrompe: “Eu não quero. Eu trabalho, tenho família, não preciso disso, não vou deixar meu marido preso no trabalho que ele odiava. Além do mais, Virgílio morreu aqui e merece ser indenizado.”
 
“Senhora Joana, é importante lembrar que não é o seu marido. Não há consciência no corpo que fica. A única semelhança que há com seu Virgílio é a aparência. fora que não há qualquer sofrimento para o corpo. O que restou de Virgílio não vai sofrer.” As palavras e seus significados atravessavam Joana como facas, e sem perceber ela levou a mão à bolsa e sacou um revólver. Talvez assim ela se fizesse entender, apontando a antiga arma de Virgílio para a cabeça de quem tentava condená-lo. “Não vai mesmo, Virgílio sai daqui comigo. Agora.”
 
A outra porta não dava para um lugar tão feio e cinza quanto ela esperava. Um corredor cheio de salas administrativas, vazias. Com certeza um setor recém-construído, talvez dedicado ao novo programa assombroso. “Por que Virgílio assinou algo assim? Ele odiava tudo ali. Um lugar que nunca lhe deu apoio para combater as dores que havia desenvolvido ali mesmo”, pensava Joana enquanto empurrava a cabeça do gerente a diante com o peso da arma. A cada esquina que viravam, a cada porta que atravessavam, o cinza nunca chegava. Ela pensou o quão ardiloso era aquilo, um inferno fantasiado de céu. Quantas almas boas acabaram perdidas nas falsas mensagens de bem-querer e vídeos institucionais de primeiro de maio de um lugar como aquele?
 
Joana guiava o gerente como quem sabia o que estava sabendo, mas não chegava a lugar algum. “Onde ele tá? Me leva!”, o gerente respondeu: “Joana, a essa hora já devem ter visto nas câmeras, vamos voltar pra sala e conversar, tenho certeza de que podemos chegar em um acordo.” e então ouviu o clique da arma sendo engatilhada. “Cê também assinou esse contrato? Seu chefe vai adorar mais um escravo de graça!”, gritou Joana, suando frio. Virgílio teria um ataque do coração se a visse naquele estado, hostil, desesperada, inconsequente. Ela também não sabia bem do onde estavam vindo esses impulsos, sabia somente o que sentia: que não podia confiar nas palavras de uma empresa, de uma entidade movida a números, a dinheiro, a gente moída por prensas e escaldadas por fornalhas.
 
Atravessando mais uma porta divisória, chegaram ao setor de contenção do programa Lázaro, protegido por uma porta de aço e dois seguranças, um em uma guarita e outro em pé. Joana agarrou-se às costas do gerente e comprimiu o cano da arma contra a cabeça dele. Os seguranças, assustados, olharam para Tiago que, com gestos calmos, impediu que eles se armassem:“Ela só quer ver o marido dela. Está tudo bem, né Joana?”. O segurança da guarita se dirigiu diretamente a Joana: “Calma moça, não faz besteira. Não tem nenhum operário aqui agora! Tão todos em uma demonstração com o Diretor”. Tiago reforçou o que o segurança dizia, na esperança de acalmar Joana e fazê-la entender que Virgílio ainda não estava pronto para ser visto e que poderiam chegar a um acordo para promover o encontro dos dois, mas ela não confiou: “Quero ver mesmo assim!”
 
Joana sentia que chegava mais perto de Virgílio e assumiu sua postura e situação, rapidamente fez com que os seguranças deixassem as armas no chão, e fez com que Tiago os algemasse um de costas para o outro. Os seguranças estavam relutantes em cooperar com Joana, mas Tiago não queria morrer naquela situação e conseguiu fazer com que eles. ditassem o código de acesso da sala de contenção. Que trabalho de merda que ele havia arranjado.
 
Lá dentro haviam celas apertadas, com espaço apenas para um assento de aço. Diversos aparelhos eletrônicos pendiam das paredes em volta do assento, oferecendo plugues e fiações para algum tipo de conexão. Caminhavam pelo corredor estreito e percebiam que eram todas iguais, se diferenciando apenas por riscos e arranhões diversos nas paredes e nos aparelhos metálicos. Alguns pareciam ser letras, mas não formavam nada. Pareciam às vezes aquelas ilusões de ótica de revistas, onde se viam rostos e formas em meio à ilustrações densas e cheias de detalhes. Mas nada daquilo se pronunciava como algo significativo. “Qual é a cela de Virgílio?”, perguntou Joana, buscando por algo que indicasse a presença de seu marido ali. Tiago disse que não sabia, que trabalhava apenas no processamento dos contratos do programa Lázaro e nunca havia sequer visto um operário. Assim, continuaram caminhando, enquanto Joana examinava rapidamente cada cela minúscula e em nada apontavam a estrutura para receber um ser humano.
 
Avançaram juntos até chegarem a uma das últimas celas, marcada como L-013, que segurou a atenção de Joana, como quando encontrava o rosto na folhagem das árvores da revista. Igual às outras, exceto por algo com os arranhões. As marcas dessa cela eram arredondadas, mais detalhadas até. Bastou alguns passos dentro da cela para que Joana descobrisse que, de alguma forma, ela estava certa.
 
. . . 
 
Era como ver o mundo através de uma televisão minúscula, distante. Ele via apenas um emaranhado de máquinas, andaimes e metal. Até a tela, uma escuridão enevoada, como quando atravessava a neblina da madrugada a caminho do ponto de ônibus onde esperava todos os dias pela condução até a fábrica. Joaninha. Frio. Ele sentia uma dor em pensamento, como uma memória distante do agora. E fome. Muita fome. A fome era a própria névoa. Era impossível pensar em nada sem que a fome atravessasse o caminho. Não era um desejo por alimento, não tinha sabor, era uma fome de viver. Joaninha.
 
“Eles estão agora em prontidão, prontos para receber as instruções. Na cabine de comando os controladores conseguem ter uma visão geral do que está acontecendo e fazem todos os processos de controle e análise. São três turnos de controladores para que os operários possam ter até 72 horas de autonomia com alguns intervalos de manutenção vital e recarga das unidades centrais. Não importa a causa-mortis, não houve mutilações severas ou comprometimento do cérebro, qualquer candidato é viável.” Joaninha. Essa descarga de informações chegou como ondas de rádio abafadas na consciência distante de Virgílio, distante de seus ouvidos, assim como a tela de TV.
 
Não lembrava de ter movido um músculo sequer. Joaninha. Mas a imagem da TV havia mudado. Mãos se movimentavam habilmente em um painel de controles que acionavam máquinas e funções específicas em uma esteira. Virgílio se lembrava de fazer isso, mas não sabia quando. Ele também não sabia dizer há quanto tempo havia parado de ouvir a voz até que ela começasse de novo. “O programa Lázaro só é possível em eficiência porque consegue explorar muito bem a memória muscular e executiva dos colaboradores. Nós conseguimos identificar e isolar esses processos mentais para acessá-los quando necessário e conseguimos criar cadeias complexas de comando e autonomia com esse processo. É possível ver que todos desempenham seu papel de forma contínua, sem erros e com mais eficiência do que faziam em vida.”
 
Joaninha. Essa palavra ressoava pela escuridão de sua mente e abraçava a dor distante. A dor. As mãos. O medo. A queda. A movimentação incessante do foco de luz no fundo de sua mente. Virgílio sentia-se diante da morte, sem nunca ser levado por inteiro.
 
“Este novo grupo foi essencial para efetuar regulagens e implementar padrões em maior escala. Considerem como um grupo de controle. A maioria era parte de um conjunto problemático que estava organizando uma greve. Acabaram se distraindo demais do trabalho e causando, infelizmente, este terrível acidente”. Virgílio sentia o impulso de olhar na direção da voz, mas não conseguia. Via somente o painel sendo desligado, distante, através da luz e seu corpo se virando em outra direção, pesado e anestesiado. De relance percebeu vários outros em sincronia com ele. Via ao longe um grupo de homens de terno e capacetes de segurança observando-os do alto de uma plataforma gradeada. Sentiu ódio. Joaninha. E fome.
 
“O único problema que ainda enfrentamos é com as necessidades básicas do corpo, que ainda se entendendo como vivo, precisa de uma forte supressão do sistema para que não afetem o desempenho do operário post-mortem e coloquem a produção em risco. Por isso existem alguns intervalos de alimentação através de uma ração desenvolvida para saciar o instinto da fome e agindo como conservante, atrasando em até noventa e três porcento a decomposição do corpo. Temos também a evacuação por um sistema de colostomia, que é esvaziada mecanicamente. Todos esses processos estão o tempo todo gerando dados e avaliações, que chegam na sala de controle a todo momento para acompanhamento e revisão pelos controladores. Preparamos uma demonstração de um intervalo de alimentação e de como resolvemos os problemas que surgiram com isso.”
 
O som vibrante que surgiu no fundo de sua mente lembrava as das prensas que operou durante alguns anos em seu trabalho. Quanto ódio. Novamente sentiu-se virar sem qualquer intenção. Fome. Uma baia de aço se projetou para fora da estação de trabalho do painel, contendo um cubo gelatinoso e espesso de um marrom levemente translúcido. O cubo se aproximava cada vez mais do túnel de luz enquanto Virgílio sentia no fundo que estava caindo. Da alto da plataforma os acionistas assistam aos corpos marionetes mergulhando violentamente em direção à ração gelatinosa, rasgando-a com as mãos e os dentes, sugando-as por completo em poucos segundos, como um boi sangrado em um rio de piranhas. O cubo gelatinoso desapareceu diante da luz, e por um momento Virgílio sentiu prazer, um prazer que não sentia há muito tempo e que se foi, como se nunca tivesse existido, sendo rapidamente substituído pela fome novamente. Virgílio sentiu seu corpo responder dessa vez, e se virou na direção dos homens na plataforma. Ele queria correr até eles, dizer a eles que estava com fome. E ao primeiro passo sentiu a dor mais pura que já havia sentido em vida ou em morte. Um frio aterrorizante. Um a um, os operários foram tombados ao chão lá embaixo enquanto ouviam a retração das baias de volta à estação de trabalho. O homem à frente de todos prosseguiu.
 
“Quando damos vazão aos instintos básicos deles, como a alimentação, cria-se uma resistência. Por isso após cada intervalo de alimentação, eles são imobilizados com uma descarga elétrica. Claro, eles não sentem nada, são apenas corpos e músculos reagindo à física. Mas é um passo importante para reestabelecer o domínio do sistema e impedir que eles saiam por aí tentando se alimentar de qualquer coisa e acabem provocando acidentes ou destruindo propriedade privada. É uma conquista e tanto senhores, e nada disso seria possível sem o grande investimento intelectual, político e financeiro que os senhores sacrificaram para tornar o Programa Lázaro algo possível!”, finaliza o Diretor, puxando uma salva de palmas, rapidamente seguida por todos os outros empresários presentes, com suas mãos macias e implantes capilares vibrando de tesão com as possibilidades de lucro inimagináveis que poderão alcançar.
 
“Virgílio!”. Joana saiu de uma porta lateral ao chão da fábrica, interrompendo as palmas e gargalhadas milionárias e correu até o agrupamento de corpos estirados no chão. Eram quase todos indistinguíveis em seus macacões marrons, cheios de tubos de fluidos, bolsas e cabos, e máscaras do mesmo tecido de lona do macacão, com aberturas de algum acrílico escuro no lugar dos olhos, deixando somente as bocas expostas. Procurando por seu marido no mar de corpos, Joana logo viu o macacão com a etiqueta L-013 e se jogou sobre ele, tirando sua máscara e se deparando com o fantasma de Virgílio.
 
Seu rosto estava pálido, entre tons esbranquiçados de verde, azul e roxo, seus olhos vermelhos e opacos, como se cobertos por uma névoa. “O que vocês fizeram com ele?”, disse Joana atônita, atravessando os olhares de cada um dos homens engravatados lá em cima, que observavam sérios à cena, até curiosos. Atrás dela chegou Tiago, caminhando tenso e lento. Como pedra, o Diretor se virou para os acionistas e pediu desculpas pelo imprevisto e então levou sua atenção à mulher chorosa lá embaixo: “Qual o seu nome? Você não deveria estar aqui presenciando isso, não vai te fazer bem.” Tiago se adiantou: “Joana da Silva, Diretor. Esposa de Virgílio da Silva. Ela quer tirar Virgílio do programa.” O Diretor levou o rádio à boca e prontamente os operários se levantaram e se alinharam, como soldados se levantando após uma série de flexões. Joana tentava segurar e se agarrar a Virgílio, mas era inútil, ele a levantou consigo até que ela mesma se soltasse dele. “Vê? Ele está bem, mas não é o seu marido” e se dirigindo ao gerente, disse com a melhor cortesia que pode: “Por favor, retire a senhora Joana daqui, essa é uma reunião restrita a acionistas. Ela vai precisar assinar um termo de confidencialidade, mas logo podemos nos reunir e resolver essa situação difícil e com certeza muito desagradável, senhora Joana”
 
Joana enxugou as lágrimas, levou a mão às costas, puxou a arma e apontou em direção aos empresários, trêmula. Pela primeira vez eles se movimentaram lá em cima, dando alguns passos para trás. O Diretor acalmou-os com o que parecia um sorriso e se virou para ela: “Em que posso te ajudar, Joana? Vamo ficar calmos”. A arma a ajudava a disparar as palavras: “Virgílio não vai ser parte disso. Ele vai embora comigo”. O Diretor suspirou, como quando precisava negociar algo banal com sua filha de três anos para fingir que se importava. “Olha bem Joana, Virgílio assinou um contrato em vida concordando com o programa. Ele queria o melhor pra você e pra filha de vocês também. Ela está internada, não é?”. Joana se assustou, mas manteve a postura: “É, e ela precisa do pai!”. “Mas esse não é o pai dela, nem o seu marido. Esse é um corpo que foi contratualmente delegado à empresa pelo seu marido. Esse corpo, infelizmente, é propriedade privada até vencimento do contrato. Seu marido faleceu, Joana. Me desculpe ter que ser tão ríspido, mas essa é a verdade.”
 
Tiago interviu: “Mas acho que há um problema com os operários, Diretor. Ela me mostrou, na cela de contenção dele. Virgílio desenhou joaninhas na parede da cela de contenção, depois de ser incluído no programa. Mostre a foto, Joana”. Rapidamente Joana tirou a foto da bolsa e mostrou ao grupo de acionistas a joaninha desenhada no verso. Um burburinho se instaurou entre os engravatados mas o Diretor não perdeu a calma. “São só reflexos de padrões de comportamento, os mesmos que guiam todo o processo realizado aqui!”
 
“Tem alguma coisa que restou dele aí dentro, e ele não merece esse sofrimento! Isso não pode ser legal. Eu vou buscar justiça!”, berrou Joana.
 
“Mas é legal. A lei foi aprovada e implementada e seu marido concordou com o programa. Ninguém acha que vai participar tão cedo. Mas infelizmente a perícia confirmou que Virgílio, numa tentativa de sabotar e parar a fábrica, juntamente com outros colegas e em conluio com outros sindicatos, causou o acidente e foi o responsável não só pela morte de todos os outros presentes aqui nesse salão como também causou um prejuízo financeiro imenso à Romero Metalurgia.” Joana, incrédula, olhou para o gerente, que confirmou pesaroso com um aceno de cabeça. “Que perícia?”, perguntou Joana, acendendo uma luz no olhar de Tiago: “A perícia contratada pela empresa…”
 
“E muito cara, inclusive, mas necessária. Virgílio e esses outros aí causaram muitos problemas, só que não se encontra colaboradores com tanta experiência como eles assim tão fácil, então é bom tê-los de volta. E isso significa que o corpo de Virgílio não só pertence à Romero, por contrato, como também está condenado a pagar com seu trabalho por tempo indeterminado, até que consiga quitar todo o prejuízo que causou em vida. À partir de então, se o corpo ainda estiver apto, a senhora começa a receber seu benefícios. Agora se me dá licença, preciso retom…”. POW!
 
O cano do revólver fumegava. enquanto Virgílio caía de joelhos e então resistia, com as mãos a cair no chão. Havia uma espécie de resistência anormal à queda para um corpo que tinha acabado de ter a cabeça atravessada por uma bala. Em mente, Joana se despediu do marido, com os olhos carregados, e deixou escapar um sorriso de alívio. Olhou para o líder dos homens de terno e disse: “Eu falei que ele ia comigo.” Lá em cima o Diretor se virou, e com um aceno, todos os outros deixaram o salão. Ele puxou seu rádio e falou algo inaudível sem tirar os olhos de Joana. Ela devolveu o olhar afrontoso e começou a puxar o corpo de Virgílio. “Eu vejo uma certa beleza nos acidentes, porque eles são feitos de detalhes. Às vezes basta um empurrãozinho, uma falha no sistema, um visitante em um lugar errado… enfim” disse o homem a Joana antes de olhar para Tiago: “Você eu não conheço, mas sejam bem vindos ao programa Lázaro”. O Diretor lança um último olhar a Joana e deixa o salão, seguindo caminho dos acionistas que se foram.
 
“Liga pra polícia agora!”, Joana exclamou a Tiago, que ainda em choque debateu: “Ele já deve ter mandado a segurança. A gente vai ser preso, no mínimo”. “Eu gravei toda a conversa no celular. Eu vou acabar com essa merda”, olhou Joana nos fundos dos olhos de Tiago, que suspirou com um certo alívio e esboçou um sorriso enquanto sacava o celular e começava a discar. Joana se agarrava com todo o amor do mundo ao corpo pesado de Virgílio. “Não tem sinal aqui, vou ligar lá de fora. Deve dar”, exclamou Tiago, já correndo em direção à porta: trancada. Joana olhou em volta e viu, lá em cima, a porta da sala de controles aberta, de onde saíam dois homens de jaleco, apressados, que logo desapareceram pela mesma porta por onde o Diretor foi embora.
 
No mesmo instante Joana e Tiago ouviram um zumbido mecânico e constante vindo do maquinário atrás deles. Das máquinas surgiram várias baias de aço, que se projetavam para fora lentamente por um sistema hidráulico. Os dois se entreolharam confusos, havia uma tensão no ar. As baias pararam em um estalo conjunto, seguido de um chiado, como freios de caminhão. Não há nada nelas. Os operários, alinhados como o Diretor os havia deixado, se viraram e o peso de seus movimentos anteriores se estenderam à movimentos fortes e ágeis enquanto eles corriam às baias rapidamente, procurando por algo que deveria estar ali. Uns tentam abocanhar as baias, quebrando seus maxilares e triturando dentes no metal. Outros começaram a olhar em volta, se direcionando a Joana e Tiago, que assustados ficaram paralisados, como se estivessem diante de um predador que não querem perturbar. Tiago não conseguiu perceber um dos operários surgindo por trás e mordendo seu trapézio com tanta força que sentiu os dentes do corpo frio se chocando contra sua clavícula, seguida da dor aguda e nauseante de quando a mão de outro operário penetrou sua barriga e puxou o que conseguia para levar à boca. Dalí, entre seus gritos de agonia, viu pelo menos cinco operários dilacerando Joana, entre mordidas, puxões e movimentos que pensava impossíveis ao corpo humano. Como Virgílio, Joana se foi. Êxtase. Dor. Fome. Depois de se alimentarem, os operários são eletrocutados, se levantam e voltam à seus postos em cada uma das máquinas, onde continuam trabalhando.
 
 
FIM
Conto: “O Operário”
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